Você já ouviu falar de trajetórias escolares não hegemônicas? Pois esse é exatamente o nosso objeto de trabalho e pesquisa. Trajetórias escolares não hegemônicas são marcadas, de alguma maneira, pela exclusão. O estudante pode ser excluído do aprendizado escolar por não receber o suporte pedagógico de que necessita, por exemplo. Por outro lado, sua vida escolar pode ser marcada por desigualdades e marcadores de vulnerabilidades, como gênero, raça e classe, e a intersecção entre eles, que afetam negativamente seu aprendizado, com consequências também para seu desenvolvimento.
O estudante que apresenta uma trajetória escolar não hegemônica necessita, em algum momento, de suporte além do que a escola já oferece, seja adequação curricular, adaptação nas avaliações, atendimento pedagógico, reforço escolar etc. Essa demanda, geralmente, é atendida por profissionais do campo da Psicologia e da Psicopedagogia a partir de diversas abordagens: Neurociência, Ciências do Comportamento, Psicanálise, Psicologia Cognitivista… a lista é vasta!
Essas correntes teóricas, cada uma com suas especificidades, tem uma maneira de enxergar o fenômeno da aprendizagem e do desenvolvimento. As ideias da Psicopedagogia mais comumente difundidas acerca da aprendizagem, por exemplo, são compreendidas a partir da esfera do funcionamento biológico – as famosas “dificuldades de aprendizagem”, explicadas a partir da Neurociência. Essa lógica encerra a origem e as (não) possibilidades na esfera biológica, balizando as discussões a partir do binômio “saúde-doença”.
Mas de que forma isso impacta nós, pedagogas que atuamos na e a partir da Psicologia Histórico-Cultural e da Pedagogia Histórico-Crítica? Provocadas a pensar na atuação clínica no campo da Pedagogia a partir dessas duas teorias, concebemos a Clínica Pedagógica Histórico-Cultural, o lugar da atuação clínica da Pedagoga perante as trajetórias escolares não hegemônicas.
Confundir o fenômeno da dificuldade de escolarização com uma questão de saúde é o que fazem outras abordagens da Pedagogia e da Psicologia, e, especialmente a Psicopedagogia. Nesta perspectiva, as dificuldades que um estudante pode apresentar são entendidas como da ordem de seu funcionamento biológico e são tratadas dentro do binômio “saúde-doença”, apagando ou diminuindo a importância do que se passa na organização do ensino escolar e nas relações educativas, também elas – e talvez principalmente elas – fundamentais para a promoção de um “desenvolvimento esperado” ou para a produção de uma dificuldade escolar. A própria nomenclatura utilizada na Psicopedagogia reflete isso: dificuldades de aprendizagem (e não de escolarização) é o termo que se usa para as características do estudante que parece não acompanhar a escola.
Dessa forma, a causa do problema é colocada majoritariamente no estudante (sujeito que aprende), ignorando-se toda a rede de relações sociais (especialmente as que compõem a trajetória de escolarização), responsáveis pela educação daquele sujeito.
Assim, a Clínica Pedagógica Histórico-Cultural nasceu do seguinte problema: os espaços clínicos de atuação do pedagogo são dominados por concepções pedagógicas e psicológicas que patologizam e biologizam problemas de ordem cultural, social e educacional e que chamam de dificuldades de aprendizagem o que são, na verdade, dificuldades de escolarização.
A escola não é o único local de atuação do pedagogo e a clínica é um dos espaços não escolares em que este profissional também está presente.
Tradicionalmente associada à área da saúde, a palavra “clínica” também pode significar “observação direta e minuciosa de um caso, ou estabelecimento onde se realizam tratamentos em outras áreas que não médicas”*.
*dicionário Michaelis
O papel do pedagogo em espaços clínicos não se relaciona com fenômenos explicados pela contradição saúde-doença, mas, sim, com o fenômeno educativo e a relação que o constitui: ensino-aprendizagem-desenvolvimento. Em espaços clínicos, o pedagogo volta suas observações diretas e minuciosas para o sujeito que busca auxílio em seus processos de aprendizagem e desenvolvimento. Assim, o objeto da clínica pedagógica é a trajetória escolar não hegemônica, isto é, um percurso de escolarização considerado “fora do esperado” pela organização escolar.
Diferentemente da Psicopedagogia tradicional, defendemos, a partir da psicologia histórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica, que o desenvolvimento humano precisa ser produzido no interior das relações sociais. Isto é, se para a Psicopedagogia é necessário acontecer uma “maturação” da estrutura psíquica da pessoa para que ela esteja apta a aprender algo, afirmamos o contrário: é precisamente o ensino o que impulsiona o desenvolvimento e a transformação daquela estrutura psíquica. Essa mudança de perspectiva tem implicações em tudo o que envolve a organização do trabalho educativo, tanto na escola, quanto na clínica.
Em outras palavras, com a mudança de fundamentação teórico-metodológica, transforma-se também o que se entende sobre o trabalho pedagógico, sobre a relação entre ensino-aprendizado-desenvolvimento, alteram-se as estratégias e instrumentos de avaliação e de intervenção clínica, de mediação entre família e escola etc.
Dessa forma, entendemos que com a Clínica Pedagógica Histórico-Cultural abre-se um campo de trabalho e de estudo que busca compreender o fenômeno da dificuldade de escolarização na tentativa de apreender toda a sua complexidade.